terça-feira, julho 18, 2006

Às vezes, Clarice....

“Às vezes, quando eu vejo uma pessoa que nunca vi, e tenho algum tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-la. E essa intrusão numa pessoa, qualquer que seja ela, nunca termina pela sua auto-acusação: ao nela me encarnar, compreendo-lhe os motivos e perdôo. Preciso é presta atenção para não encarnar numa vida perigosa e atraente, e que por isso mesmo não queira o retorno a mim mesmo” . Trecho do conto Intrusão Involuntária, do livro Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector.

Nesse momento estou encarnada em Clarice Lispector. Não tenho culpa se desde pequena, quando devoro um livro muito prazeroso, os personagens passam a existir em mim. Subtraem minha personalidade para que eu possa sentir como eles, respirar como eles, amar como eles, sofrer como eles. Fui Polyana lá pelos 8 anos: fingia uma felicidade impossível, uma alegria forjada na tristeza. Na raiva. Nas decepções. Devia ter uns 12 quando virei Clarrisa, a professorinha romântica da trilogia de Érico Veríssimo – Clarrisa, Música ao Longe, Saga - a sonhar com o primo Vasco, criatura incompreendida. Fui também as fulaninhas de Nélson Rodrigues quando descobri A Vida Como Ela É....

E agora, sou Clarice. E isso nada tem a ver com a minha pretensão literária o que certamente soaria como uma pretensão de minha parte. É que estou lendo o livro A Descoberta do Mundo, coletânea de crônicas que ela escreveu para o Jornal do Brasil de 1967 a 1973. E como ela é a principal personagem, não tenho outra alternativa senão nela me encarnar...Sinto sua solidão, sua angústia, sua paixão, sua insegurança, seu medo. Não como sentimentos exteriores. Não como observadora. Sinto-os em mim. Impregnados. Se esta tela fosse um espelho eu veria o rosto dela, e não o meu.

Eis ao que ler a biografia de Clarice no site Releituras (quem não conhece deve acessar correndo porque é muito interessante) e encontro a explicação para essa encarnação em Clarice: “segundo estudos feitos por Claire Varin, professora de literatura canadense ( ela escreveu dois livros sobre Clarice) só é possível ler Clarice tomando seu lugar — sendo Clarice. "Não há outro caminho", ela garante. Para corroborar sua tese, Claire cita um trecho da crônica A descoberta do mundo (olha ele aí, o meu livro de cabeceira...), onde a escritora diz: "O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor, é o escritor."

Isso quer dizer que eu não sou única Clarice por aí....Nesse mesmo instante, algum estudante, professor, jornalista, escritor, curioso deve estar engavetando sua personalidade para que a Clarice continue existindo....

Na crônica As Três Experiências, Clarice fala que há três coisas para as quais nasceu: “nasci para amar os outros, nasci para escrever e nasci para criar meus filhos”. Bingo. Nasci para essas coisas também! Eis, de novo, a Clarice encarnada em mim....E no final do texto ela diz o seguinte: “Se é verdade que existe uma reencarnação, a vida que eu levo agora não é propriamente minha: uma alma me foi dada ao corpo. Eu quero renascer sempre. E na próxima encarnação vou ler meus livros como uma leitora comum e interessada, e não saberei que nessa encarnação fui eu que os escrevi”.

Faço as contas: Clarice morreu em 1977. Mas eu nasci em 1972.

Não, infelizmente não posso ser a Clarice....

Nenhum comentário: